Wednesday, April 12, 2006

Raiva

"Como assim melhor colheita, Renan? Tá delirando? Onde é que você vai colher maracujá?"
A pergunta do cozinheiro metido a besta cortou os sonhos de Renan com Jucilene. E o fez sentir ainda mais raiva daquele branquelo metido a besta, que aprendeu a cozinhar olhando em livro. Sua mãe nunca leu livro nenhum, nunca soube ler, mas fazia um almoço mil vezes melhor que o dele. O faxineiro teve vontade de responder de onde tinha colhido de verdade aqueles maracujás que carregava no saco. Que eles vinham do banheiro, que nasceram dos vasos roxos. Pensando bem, aquilo era tão irreal que, se ele contasse, aquele imbecil não acreditaria mesmo.
"Colhi aqui agora mesmo, do banheiro. Eles nasceram destes vasos roxos".
O galego caiu na gargalhada. "Renan, você deu de beber? Onde já se viu colher maracujá no banheiro? Eu sei o que você foi colher no banheiro...", e saiu, dando as costas, para a cozinha. E Renan ficou lá, em pé, motivo de chacota, mais uma vez na vida. Agora, deu tanta raiva que a vontade dele era jogar aquele saco cheio de maracujás no lixo, junto com aquele imundície do banheiro.

Friday, April 07, 2006

Maracujá ali?

E Renan tinha era que dar um jeito naqueles maracujás que continuavam a crescer nos banheiros. Aquilo não tinha cabimento. Mas cortou, um a um, e guardou todos na cesta. Tirou os ramos que se espalharam e quase saíram pelas janelas dos banheiros, os colocou em um saco escuro de lixo. Pronto, tudo parecia limpo. Mas, o que ia fazer com aquelas frutas? Se levasse para a cozinha, o que diria aos cozinheiros? Que colheu no banheiro? Que comprou na feira? Mas, com que dinheiro? Ele era o faxineiro, ele não comprava nada. Bom, podia levar aquilo tudo de fruta pra casa. Mas onde ia guardar aquilo? Podia fazer suco, mousse, bolo, dar maracujá pras vizinhas, bom, podia dar uma boa quantidade para aquela vizinha bonita, que chegou do Ceará dias desses e sempre o cumprimenta com um sorriso. Era isso, ia oferecer um monte de maracujá para ela, com pretexto para puxar conversa. E aí ela podia fazer doce, mousse, bolo e oferecer pra ele. E ele iria à casa dela, saberia se ela está trabalhando ou não, se deixou alguém no Ceará, se já tem alguém aqui, ou se o alguém dela aqui poderia ser ele... Ah, deixa aqueles cozinheiros frescos comprarem o maracujá na feira, no ceasa, em qualquer lugar. Aqueles que ele tinha pego já eram dele.
Mas, e quando perguntassem de onde ele pegou? Não ia dar pra dizer a verdade. O povo ia dizer que ele tava doido. Talvez de tanto trabalhar. Podia até ser. Aliás, nem ele podia pensar muito sobre aquela situação ridícula: uma tesoura, um cesto, um saco de lixo. Mas tudo isso num banheiro, por conta de um vaso roxo. Será que aqueles maracujás fariam mal? Ou será que eles fariam bem? Eles fariam a Jucilene, a vizinha do Ceará, olhar pra ele como quem olha um príncipe?

Saudade do feijão de corda

Teve vontade de perguntar se ela conhecia aquilo que comia. Mas não conhecer de responder que era feijão, isso todo mundo via. Mas se ela sabia como nascia o feijão de corda, como escolher o melhor feijão, como preparar. E, principalmente: o quanto era especial a lembrança dele para tanta gente. Ela não estava em almoço de família. Estava com amigos, mas não era a mesma coisa de quando ele foi para o Recife, para aquele jantar de Natal onde ele viu pela última vez o tio Cavalcante e suas histórias fantásticas. Da época em que feijão de corda era sonho de refeição quando almoço era caldo de qualquer coisa engrossado com farinha. Mas o tio Cavalcante conseguiu melhorar de vida. Teve sorte na criação de vacas e bodes, vendeu, revendeu, plantou milho, feijão de corda e conseguiu até montar um comércio. Fez família, sustentou amigos, até se acabar nas dívidas. Outros mercados apareciam, os antigos clientes foram embora para tentar a vida em terras distantes... E só sobrou ele, parte da família e a avó, tão carinhosa quanto era sua mãe e tanta gente que ficou lá, no interior. O feijão de corda esteve em tantos almoços que reuniram a família toda... Agora, ele estava naquela mesa da moça de chita. Se fosse o garçom, derrubava todo o feijão naquela mesa, só de raiva. Pra ela saber que aquela comida que ela achava que era moda e pela qual pagou tão caro era coisa farta nas roças do pai e do avô. Que, se ele quisesse, faria um melhor que aquele. Mas Renan era só o faxineiro. E não queria perder o emprego agora. O que ia arrumar depois? De que jeito ia continuar sonhando em voltar para o sertão? Não queria voltar pobre, sem nada. Não ia ser rico como o tio Cavalcante foi. Mas não queria ser pobre como ainda era seu pai. Agora ele tinha que dar um jeito naqueles maracujás que, puxa, já estavam com galhos saindo pelo banheiro. Aquilo só podia ser brincadeira de desocupados. Quando o restaurante já estava vazio, no meio da tarde, pegou uma tesoura e foi até o vaso roxo.

O culto ao pobre exótico

Será que tantas horas de trabalho tinham deixado Renan maluco? Terá sido a cervejinha no boteco no dia anterior? O virado de feijão que ele tentou fazer igual ao que a mãe fazia na Bahia? Não devia ter exagerado naquela pimenta, pensou. Mas ele nunca viu pimenta dar alucinação, vertigem, e nem fazer nascer maracujá. Sempre achou que quem delirava demais era aquele povinho que ia no restaurante onde ele era o cozinheiro: festas regadas a muita bebida e muita coisa estranha, que deixava aquele povo novinho todo caído no chão, passando mal... Não sabia como agüentavam chegar em casa. Eram festas com música boa, mas será que eles gostavam por vontade própria ou porque botaram no som, apenas? Outro dia, vira passar pelas mesas do restaurante uma turma bonita, mas que se enfeiava que dava dó. Tinha até um que era cantor famoso, negro, alto, mas com os cabelos tão desgrenhados quanto os dos doidinhos que corriam e gritavam na poeira do sertão que ele deixou há algum tempo. Aliás, outra coisa que nunca entendeu era como aquela gente toda gastava dinheiro. O restaurante em que ele trabalhava era muito caro, ele, por vontade própria, nunca comeria lá. Comia apenas porque trabalhava e também cozinhava. Ah, mas por vontade própria, ele quer mesmo é juntar dinheiro e voltar pro poeirão de onde veio, que agora tem água encanada, tem luz e tem festa em todo final de semana. E tem os maracujás do quintal da mãe. Mas maracujá tinha ali também, no banheiro, enquanto ele lavava a mão. Como será que eles nasceram ali? Terá sido por causa das vezes em que chorou escondido, de saudades de todo mundo? Da mãe, dos irmãos, do pai e da menina que ficou por lá? São Paulo era terra de meninas bonitas, sempre diziam pra ele. E era mesmo. Mas nenhuma pertencia ao seu mundo. E nem queria saber de suas histórias. Por mais que usassem saias de chita e sandálias rasteiras. Por enquanto, a lembrança mais próxima de sua casa eram os maracujás do banheiro.

Vaso roxo

O moleque mexe naquele vaso engraçado, de flores roxas que ele não sabe o nome. Quem trouxe foi o irmão mais velho que foi trabalhar em São Paulo, em restaurante bonito, que só gente rica ia. Assim a mãe falava. O vaso era engraçado, mas mesmo para uma criança pequena essa gente de cidade grande é estranha. Ele vê a mãe cuidar com tanto carinho das plantas que ela cultiva no quintal, vê o pai sair toda manhã pra cuidar da roça, e vê a mãe chorando quando não chove... Se as plantas do quintal e da roça também não sujassem e nem precisassem de água, talvez a mãe não choraria. Mas, se nenhuma planta precisasse de água, o que ia acontecer quando chovesse? O que ia acontecer com os pés de maracujá, e com as flores mais lindas do mundo que ficam dependuradas? Elas são meio roxas como aquelas do vaso engraçado, que nunca suja, mas as flores lá do pé de maracujá também não sujam. Elas ficam bonitas por um tempo, depois parecem que murcham. Mas acabam virando maracujás, aqueles que a mãe tira o suco, faz doce e joga depois o bagaço para as galinhas ou para os porcos. O vaso que estava lá, naquela mesinha, nunca ia dar maracujá.
Mas aquela gente que precisava desses vasos nunca nem deve ter visto pé de maracujá. Porque, pra chegar até eles, é preciso pegar poeira de verdade, da estrada, e não aquela sujeira fabricada, que se compra e que se limpa conforme a moda passa. Por isso, acho que a moda não pega no sertão. O sertão é seco, mas tem flor de maracujá quando chove. E tem pé de manga, tem até flor de mandacaru. Sim, o cacto, lá no sertão, dá flor. Ela é rara. Mas é bonita. Mais que a dos vasos roxos.

Pra vc e eu e todo mundo cantar junto

Extremamente fácil, como uma música famosa de uma banda que optou por fazer muitos sucessos fáceis. Mas, puxa vida, quem busca conforto não procura cactos. Ninguém cheira estas plantas, não colocam a mão, nada. Não se chega perto do que machuca. Quem sabe eles não ficaram lá como adornos? Enfeitezinho, só pra ninguém dizer que não tem nada por lá. Acho que a reflexão da vida no sertão nunca chegou nem perto dessa gente. Não sabem que, com o castigo do sol, o cacto vira mandacaru e não presta nem pra sombra. Não presta pra nada, mesmo que alguém insista em comer.
Mas é melhor manter a preguiça. Melhor fingir que se cuida de uma planta que não precisa de atenção. E transmutar todos os que estão ao redor em plantas – mas destas, que não requerem água, que vivem com poucos cuidados. O próximo passo poderia ser com flores de plástico. Mas até elas precisam ser limpas de vez em quando. Mas, pelo menos, não manifestam vontade própria. Não morrem quando estão mal cuidadas. Apenas ficam feias e sujas.

A pergunta inútil (ou como tudo começou)

Pq colocar cactus nos banheiros?

Juvenar, juvenar!

Tá frio aqui...
... e acho q está testado!
Desafio agora: postar o conto pedaço a pedaço!